O riso de uma criança
borbulhava pelo ar. Uma garotinha... que enquanto brincava, girando e dançando
com um urso de pelúcia, sem querer, acabou indo para a rua. O ruído da batida teve
um grito estridente; isso foi tudo que ela conseguiu ouvir antes do ocorrido. O
som gritante de um metal se contorcendo e a afastando de seu brinquedo favorito.
Foi tudo muito rápido. Ainda havia alegria presa em seus olhos quando o terror
tomou de conta. A fumaça podre de borracha queimada rodopiou no ar enquanto os
pneus enormes deslizavam pelo asfalto. Quando menos percebeu, já estava feito.
O velho veio correndo o mais rápido que pôde, se arrastando com seu andador.
Ele seguiu com pura adrenalina, ignorando a condição que tem atormentado suas
articulações durante a maior parte de seus anos como um idoso. Ele gritava o
nome dela. O motorista do ônibus saiu e jogou as mãos sobre a boca enquanto
soltava um gemido lamentável de pavor e culpa. Ele cambaleou para trás olhando
para ela com o rosto pálido e as mãos tremendo. O velho o amaldiçoou quando passou
por ele, exigindo que chamasse uma ambulância. O motorista só conseguia
gaguejar em pânico falando com o operador na linha e o velho caiu ao lado da menina.
Ela estendeu o braço frágil e trêmulo, coberto com cortes sangrentos e graxa
preta do radiador que a derrubou. Apontou para o céu e falou suas
últimas palavras.
- Vo... vô... olha –
Ela disse com a voz fraca, mas como se estivesse maravilhada com alguma coisa -
Há uma garota e ela é muito linda...
Em seguida seu braço
caiu, com o baque fraco ao lado de um ursinho de pelúcia com cor de arco-íris e em pouco tempo ela estava dormindo, para nunca mais acordar.
CENTO E UM.
Como uma piada cruel,
Deus adicionou mais um ano. Era a manhã do aniversário de Osmar Pereira, e como sempre, nem uma alma sequer veio visitá-lo e ele nem as
receberia se tivessem. Hoje em dia ele conquistava o sonho de muitas pessoas que seria conseguir escapar da tão temida mão da morte, para viver mais um ano
sobre esta terra sombria e miserável, mas para ele isso era como um insulto constante. A maioria não se atrevia em perturbar o velho rebelde, mesmo
quando ele estava explorando os corredores vagos do hospital com prazer em seu
velho rosto abatido. Se alguma vez ele sorriu, sem dúvida, era porque estava prestes a castigar a orelha de alguém; uma doce
armadilha, se você quiser. Inclinando-se sobre seu andador e arrastando junto
com ele o seu suporte para soro, ele foi caminhando, segurando por uma pata um urso de pelúcia com
um alegre arco-íris. O velho e sujo brinquedo
balançava em seus dedos elegantes enquanto ele respirava fazendo seu
caminho, alegre e solitário.
Osmar era mal
compreendido como um sujeito desanimado, ingrato e de temperamento forte. Poucos sabiam a verdade. Ele viveu o suficiente para ver sua esposa, sua filha,
e até mesmo sua neta morrer diante de seus olhos. A última delas, Márcia, foi o
mais vívido e trágico. Enquanto estava sob seus cuidados, um motorista de
ônibus desatento acidentalmente a atropelou enquanto ela brincava na rua. Ele se
distraiu por apenas um segundo quando ela desapareceu do quintal. Antes mesmo
que ele pudesse se levantar de sua cadeira, o pior dia de sua vida já tinha
acontecido. Ele nunca se perdoou por isso. Tendo sido forçado a enterrar todas
as pessoas que ele já amou nesta terra, ele só se perguntava se ainda vivia apenas como uma forma de castigo, pois não tinha nada que seria suficiente para curar suas feridas ou aliviar suas perdas. Embora grato
por ainda ter juízo em uma idade tão avançada, a vantagem de ter sua memória
tão bem preservada, assombrava suas horas acordadas com arrependimento e rancor.
Ele se perguntando se alguma coisa boa nessa vida ainda tinha
sobrevivido. E assim, durante anos, o único presente que ele realmente queria
receber no seu aniversário era o presente da morte.
Seus últimos dias
foram gastos cambaleando em um hospital com um diagnóstico de alguma doença estranha nos ossos, com um nome longo e complicado que ele mal conseguia
pronunciar. Depois de tudo que ele passou, ser lentamente torturado e morto por
algo que ele não podia nem nomear era provavelmente uma das maiores brincadeiras da
mortalidade. Muitas vezes sua condição o aleijou quando ele procurou usar seus
músculos para qualquer coisa além de socar os botões de um controle
remoto procurando um maldito canal meteorológico na televisão. Embora ele quisesse saber sobre o furacão que estava se formando e destruindo tudo do outro
lado do mundo, não era algo que lhe dava motivos para ser grato pela vida. Ele atribuiu isso a pura,
fria e imparcial loucura que foi ficar confinado dentro de seu quarto quase todos os
dias por três anos. Ele lembrou de uma vez quando era jovem e teve que passar a
noite em um hospital. A conta foi absurda. Então começou a se perguntar quanto de
sua seguridade social permaneceria uma vez que ele finalmente batesse as botas,
ou se eles simplesmente puxariam o plugue dos equipamentos no momento em que o cofrinho secasse...
de qualquer maneira, boa viagem! Aqui, eles só sabiam espetar com agulhas para
prolongar o seu fim. Porém, esse fim jamais deveria ser bem-vindo.
Apenas algumas semanas
depois ele finalmente encontrou o significado de continuar vivendo. Era uma
nova paciente que ele tinha conhecido por acaso, enquanto fazia o seu caminho
pelo corredor para reclamar com alguma enfermeira por alguma razão que ele
não lembrava mais. Uma garotinha com uma mãe solteira que precisava de cuidados
especiais para sua filha enquanto ela tentava continuar com seu trabalho em
tempo integral sem ter um colapso mental. Ela era linda; vestia um vestido branco, com os olhos azuis mais brilhantes que ele já tinha visto. A menina
sentou-se como se tivesse em cima de uma nuvem com a tranquilidade de um anjo, olhando para
ele com um sorriso brilhante que instantaneamente derreteu seu coração. Ela lhe
perguntou por que ele estava tão zangado, ele explicou e ela começou a
sorrir. As palavras que ela disse, tocou seu coração e ele carregaria isso
consigo até o fim de seus dias.
- A vida é muito curta
– foi o que ela disse enquanto não parava de sorrir.
Então as portas do
elevador que sua enfermeira estava esperando se abriram como os grandes portões
para um céu em que ele não acreditava mais, e elas foram embora.
Osmar logo a
encontrou novamente e, desde então, passou incontáveis horas com ela,
relembrando todos os fatos de sua longa vida e compartilhando histórias mágicas
de fantasia. Ela era sua amiga; o última amiga que ele tinha, e uma amiga que
ele sabia que não teria muito tempo. Ele contou a ela sobre seus dias de serviço. Ele era médico e não gostava muito de disparar aquele rifle horrível
que o fizeram carregar na grande guerra. Mas, adorava cuidar das pessoas. Contou como conheceu sua esposa, em uma
biblioteca onde eles estavam estacionados na Alemanha. Eles se encontraram no
corredor da fantasia procurando pelo mesmo livro. O amor à primeira vista...
vergonhosamente clichê, mas foi assim que ele disse que se sentia. Eles tiveram
três filhos. Olhando para trás, ele percebeu que ele tinha tinha sido muito bom. Teve
uma longa vida com uma mulher maravilhosa.
Sua nova amiga apenas sorriu e ouviu.
No outro dia, quando ele veio visitá-la
novamente, bateu na porta e foi imediatamente respondido por uma mulher
muito bonita de uns 20 e poucos anos com uma cara de nojo. Ela o olhou longa
e friamente, cruzando os braços, e respondeu:
- Sr. Osmar.
Irritado por sua
saudação grosseira ele respondeu com sua maior assinatura, o tom de enojado.
- Enfermeira, Amanda.
- É Doutora Dolores -
ela prontamente corrigiu.
O velho suspirou ainda
mais irritado. Ele já estava acostumado com ela.
- Sim, bom... casar com
o médico não te qualifica exatamente como um. Sendo que você é apenas uma
assistente médica, eu pensei que estava sendo gentil ao saudar você como uma
enfermeira, ao contrário do que eu realmente queria dizer, que é:
Caia fora daqui sua idiota loira, eu estou aqui para ver a Sofia.
Em algum lugar na sala
uma voz alegre e jovem gritou:
- Osmar!
O velho temperamental
ficou de lado, e a enfermeira saiu murmurando palavras amargas a
respeito do seu comportamento. Com a mulher fora de seu caminho, ele estava
livre para avançar para a sala onde encontrou a menininha de cinco anos com um
vestido branco, deitada sobre uma maca com seus olhos azuis penetrantes e seu
sorriso perfeito e radiante. Porém, seus olhos estavam afundados e escuros
agora, assim como suas bochechas e os detalhes de seu crânio estavam
doentiamente visível. Ela não tinha mais cabelo e nem sobrancelhas. Estava bem
doente e a beira da morte; tão doente quanto qualquer um poderia estar neste
lugar, mesmo sendo tão cheia de vida. Ela mal falou da dor, embora muitas vezes
parasse no meio das frases para estremecer, com ondas de angústia passando por
ela. A bolsa de quimioterapia pairava sobre ela como um demônio amarelo para
insultá-la com sua própria mortalidade esgotante, mas ela não parecia se
incomodar nem um pouco com isso.
Osmar trouxe o urso
de brinquedo e disse com uma voz rouca:
- Isso pertenceu a
alguém - ele fez uma pausa, lutando contra as velhas emoções - alguém muito
querida para mim. Eu gostaria que ficasse com você.
Ela ficou cheia de
alegria ao ver o bichinho de pelúcia enquanto se animava em sua cama, mas então
parou por um minuto. Relaxou de volta na cama e ficou com um olhar de culpa,
então disse melancolicamente.
- Mas... é seu
aniversário e não o meu. Eu não tenho nada para te dar.
- Seu tempo é mais
valioso para mim do que qualquer presente que qualquer um poderia receber – ele
falou sorrindo com seu braço estendido começando a tremer por causa o peso do
urso.
Ainda assim, ela
estava relutante em aceitar, tirando do velho um riso constrangedor de
frustração e então ele insistiu em um tom quase de apelo:
- Por favor, Sofia,
apenas... fique com isso.
Ansiosamente, ela
pegou o brinquedo e o puxou dando um abraço profundo e amoroso.
Osmar se virou e com
a ajuda do seu andador cuidadosamente foi para a beira da cama. Mais uma vez
ele sorriu enquanto admirava a menina.
- Você sabe que faz
tempo que o urso não era tão amado assim?
Quase saltando com uma
alegria contagiante deixando o velho exausto até mesmo só assistindo, a menina
segurou o animal de pelúcia contra seu rosto e falou alegremente:
- Obrigada! Obrigada! Obrigada!
- Você merece, minha
querida.
Depois de um momento,
ela ficou com um olhar curioso e perguntou:
- Você poderia me contar mais uma das suas histórias?
Osmar lhe deu um
olhar cansado e hesitou um pouco.
- Por favor - ela
implorou, apertando o urso em seus braços. - Elas me fazem sentir... forte.
O velho, então, balançou
a cabeça com um sorriso cansado, dizendo:
- Oh tudo bem. - E então ele começou,- Uma vez, há muito tempo...
Osmar contou sobre os
triunfos de sua vida e sobre as fantasias, espadas e feitiçaria que envolviam sua
mente. Ele teceu uma teia de imaginação que se expandiu para além do tempo e do
universo, e de repente eles foram levados para outro mundo. Ele foi o bardo que
guiou sua jornada, e ela era uma guerreira montada em um urso em cima de um
arco-íris. Foi muito divertido, mas não demorou muito para ela dormir. Ele foi
embora, rezando para que tivesse a chance de contar a ela apenas mais uma
história pela manhã, e mais uma ainda no dia seguinte, mais uma no outro dia...
Não demorou nem um mês
para sua condição piorar, pareceu a duração de apenas um leve cochilo na vida de Osmar. Mas, foi só então que ele entendeu o porquê adorava tanto a doce
garotinha que conheceu a apenas alguns quartos de distância do seu: Depois de
um século de existência, vendo três mulheres que ele tanto amou escorregar
entre seus dedos, e continuar com uma vida que ele não apreciou... finalmente
ele encontrara uma amiga que o lembrou o que era amar novamente. A menininha
inocente, encontrou a morte muito antes do velho que viveu além do que ele
deveria suportar até que encontrasse a felicidade novamente.
Através de suas
histórias, ele sabia que ela tinha vivido muitos anos, e através de seu
espírito aventureiro ele redescobriu o seu próprio valor. Tão jovem e mesmo
assim ela passou, sem saber, o seu primeiro beijo, sem ter que se preocupar com
impostos, ou estresses com o trânsito, ou pagar contas; foi apenas uma criança
e teve um amigo para brincar. Embora Osmar não fosse muito disposto a brincar,
ele gostava muito de contar histórias, e isso parecia ser o suficiente para ela. Ela
se impressionava e admirada sempre perguntava como e por que, sempre intrigada,
sempre ouvindo. Ela tinha medo de dormir, e muitas vezes implorava que o velho ficasse acordado até mais tarde para lhe contar as histórias de um homem que
viveu uma vida plena. Essas eram as histórias favoritas dela: as verdadeiras.
Ele nunca entendeu o porquê, até que fosse tarde demais... sempre quando era
tarde demais.
Em uma certa manhã, ele
ouviu uma batida na sua porta. A enfermeira invadiu e anunciou.
- Sr. Osmar - ela falou
com desdém, como uma pessoa faz ao pronunciar o nome de quem despreza. - Você
tem uma visita.
Ela o ajudou a sair da
cama e depois que ele conseguiu se equilibrar em cima do andador, ela o levou
até a porta, permitindo ele assumisse dali em diante.
Uma jovem com um
vestido preto e vermelho estava esperando por ele. Seu cabelo loiro estava
retido com um coque bagunçado, e seus cachos pesados estavam pendurados em
ambos os lados de sua cabeça, pareciam enfeites de árvore de Natal. Em sua mão
ela estava segurando o presente que ele tinha dado a Sofia: o urso arco-íris.
O velho acenou com a
cabeça para a enfermeira, e disse:
- Obrigado,
enfermeira, Amanda. – Falando bem devagar com desprezo e provocação. - Eu já
estou bem.
- É o Doutora
Dolores... - ela enfatizou novamente.
- Você não tem alguns
exames para coletar em outro lugar? - Ele respondeu de volta.
Gemendo algo, ela se
virou e saiu andando pelo corredor, murmurando com seu desdém de sempre.
Osmar olhou a sua
visitante com um olhar confuso.
- Sinto muito sobre
isso. Como posso ajudá-la?
- Você é Osmar Pereira? - Perguntou a jovem, com uma voz tão bela que parecia veludo em seus
ouvidos.
- Sim, eu sou.
- Eu - Ela gaguejou,
com o rosto tremendo - Eu sou Denise Souza... A mãe do Sofia.
- Oh, eu sinto muito
pela sua perda – ele disse com pesar, imaginando o quão branco seu rosto tinha ficado
naquele momento. - Ela foi uma grande amiga.
- Eu sei - Ela respondeu
enquanto olhava para o urso, tentando conter sua tristeza, mas ela com o olhar
que ele estava familiarizado de perder alguém - Ela falou sobre você momentos
antes de sua morte. Ela me fez prometer que eu iria devolvê-lo para você. – Apertando o brinquedo bem forte, ela continuou - Ela ficava dizendo que Márcia quer que você
fique com ele... Que a Márcia quer que você se lembre que ela ainda está com você;
que todos eles estão.
Se não tivesse ficado
branco o suficiente antes, agora ele estava mais pálido que um fantasma. Ele
engoliu seco e suas mãos ficaram trêmulas ao estender para pegar o animal de
pelúcia. Ao entregar e suas mãos se tocaram. A mão dela era quente e gentil,
mas muito forte. Ela apertou o urso antes de soltar e Osmar notou que haviam calos, resultado de muitas horas esfregando pratos e limpando a cozinha
em que trabalhava. Ela colocou a mão no braço dele e o olhou nos olhos.
- Se você não se
importa que eu pergunte... - Disse a mulher - Quem é Márcia?
- M... minha... - Suas
palavras estavam presas em sua garganta. - Minha neta. Ela morreu anos atrás.
Uma lágrima caiu de
seus olhos e correu para baixo seu rosto.
- Oh, me desculpe. - Ela
fez uma pausa para coletar seus pensamentos. Ela parecia muito cansada - Sofia me contou que fez uma amiga que tinha tantas histórias maravilhosas. Deve ter sido de algo que você compartilhou com ela.
Seus olhos pararam de
chorar, mas velhas feridas foram se reabrindo dentro e então ele balançou a
cabeça e dizendo:
- Não, eu nunca contei
a ela sobre a Márcia...
Um frio correu pela
espinha de Denise quando ela lembrou as últimas palavras de sua filha. A
memória voltou para ela como um sonho assombrado.
Com a pouca força que
tinha, a menina esticou o dedo para tocar o braço da mãe. Lágrimas umedeceram suas
bochechas enquanto ela apertou sua mão pequena e fria, e
perguntou:
- O que foi, querida?
- Mamãe...- Sofia respirava fraco, estava muito quente e com febre. - Posso ir brincar agora? A Márcia quer
brincar.
Ela se inclinou e
beijou sua filha na testa, suas lágrimas pingaram em seu nariz rosado. Forçando
um sorriso, ela respondeu:
- Vá, querida. Pode
brincar.
Eram as palavras mais
difíceis que uma mãe poderia dizer ao seu filho. Quando o monitor cardíaco fez
o som de morte e sua mão parou, ela entendeu o que aquilo queria dizer de verdade. Mudou de posição para
descansar a cabeça sobre o peito da sua filha e chorou. O cotovelo
dela bateu no ursinho de pelúcia ao seu lado e o fez cair no chão. Quando
caiu, veio um som fraco no ar como o suspiro sombrio batendo em suas costas.
Denise se animou ouvindo algo e levantou a cabeça. Ela jurou que tinha ouvido um
som saindo do monitor cardíaco... algo como, crianças brincando.
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